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dezembro 18, 2002


Edmund Dulac - "Grimm's Fairy Tales - Snow Queen"

Conto de Natal

ELE ESTÁ OBSERVANDO VOCÊ
Giulia Moon

Era um veículo grande, pesado, negro. Um Volvo de motor suave e silencioso. Sólido. O Velho saiu do carro e olhou para o prédio em frente. Novo milênio, novos sons nesse mundo barulhento. Estalou os dedos, como fazia há muito tempo, sempre igual a cada Natal. Tanto a fazer... Por um desses paradoxos de lógica, durante o curto espaço de uma noite tinha que visitar um número assombroso de casas. Por isso a sua noite era interminável, cada hora emendava-se à outra e, quando se dava conta, era início de mais um Natal. Um destino que jamais questionava. Eternidade de passos sorrateiros em silêncio para não despertar o sono dos que passam como poeira, desaparecendo rapidamente no corredor do tempo. As pessoas. Os comuns. As crianças. A humanidade avançando no movimento sem fim do relógio. Ilusão de um conceito puramente hipotético. O tempo. Bah. O tempo servira apenas para construir um mito vulgar. Haviam o transformado numa espécie de ratinho trocador, que deixava presentinhos nas meias infantis, depois de consultar a lista de má-criações do ano. Para quê? Afinal, o que era o mal e o bem? Nem mesmo ele seria capaz de dar a palavra final sobre esse assunto. E quem quer que se achasse no direito de julgar era um tolo.

Entrou pela porta da frente, a chave na fechadura girando suavemente, enquanto passinhos leves mas não tão silenciosos o seguiam, fiéis há tantos milênios. Uma pequena procissão para levar as oferendas à criança adormecida. O Velho apontou para a árvore brilhante. As suas criaturinhas, obedientes, olharam para a direção indicada. Fibras óticas. As luzes piscavam no pinheiro high-tech, sincronizadas com o som baixinho de Jingle Bells. Admirou por alguns instantes a mudança hipnótica de matizes de rosa, lilás e verde. Ouviu o som de um estalo. Eram os seus dedos. Isso interrompeu o círculo vicioso em que os seus pensamentos ameaçavam se perder na contemplação das luzes. Concentrou-se por um momento para decidir o destino dos presentes. Choro ou riso? Presentes ou a decepção do vazio na pequena meia cheia de tantas esperanças? Para todas as crianças, era sempre o acaso quem mandava. Após tanto tempo, continuava a visitar crianças adormecidas como se uma força muito antiga o impelisse a isso, embora desconhecesse a origem dessa força e o que a produzia. E por pura inércia continuava a guiar-se pela sorte para decidir por algo que não tinha como opinar. Não se importava. Precisava continuar. Estava de bom humor, por isso escolheu algo fácil. Pensou em uma cor ou letra. Se houvesse algo na sala dessa cor, ou cujo nome começasse com essa letra, a criança sorriria. Vermelho. Bingo!

Os passinhos das pequenas criaturas que o serviam redobraram a marcha apressada, os presentes foram depositados sob a árvore de luzes e ele preparou-se para estalar mais uma vez os seus velhos dedos e desaparecer sem deixar vestígios. Mas não o fez. Olhou para a soleira da porta e viu dois olhinhos arregalados a fixá-lo com curiosidade. O Velho o fitou, perdido naquelas órbitas vivas e palpitantes do menino. Olhos humanos que viam, após tanto tempo, a sua pele escamada, os tons acinzentados do seu couro áspero endurecido pelas intempéries de uma eternidade. E a criança, os polegares enfiados na boca, olhava para a figura no centro da sala, uma sombra gigante encobrindo as luzes da árvore de Natal. As órbitas gelatinosas dos olhos amarelos do Velho giraram, para certificar-se que não havia mais ninguém ali. Lentamente, foi movendo o velho corpo, balançando a pesada cauda que despontava sob o casaco do paletó vermelho. Má sorte para o menino. Para ele, o Velho, nada demais, a não ser um pequeno atraso. Vida ou morte? A sorte decidiria, como tinha decidido o destino de tantos e tantos seres humanos que o surpreenderam em incontáveis noites de Natal. Sentiu as garras escuras projetando-se para fora de suas patas, roçando nos pêlos duros e grisalhos. O gosto da carne tenra voltou-lhe à memória numa sensação de bem-estar e de saciedade. O garoto agora estava bem perto dele, dera dois passos em sua direção, movido pela curiosidade dos que são jovens demais para sentir medo. Pensou na charada que decidiria tudo. Uma palavra. Desta vez, seria algo mais difícil: uma palavra com a letra K. Olhou em volta. Nada. Sua boca salivava de ansiedade e fome atávica despertada. O garoto ria, dando passinhos desajeitados sobre o carpete, os pezinhos rechonchudos aparecendo sob a calça meio arriada do pijama. Outras risadas, mais cruéis e sarcásticas, soaram atrás do Velho. Pezinhos nervosos batiam no chão, impacientes, produzindo um som de tambores selvagens. Era o prelúdio para o sangue. Então ele viu a palavra pequenina, bordada no lado esquerdo do pijaminha moderno e colorido do garoto: “Pokémon”, com K.

Um Volvo parte silenciosamente pela rua deserta. Uma mãe ralha com o filho que deixou a cama para xeretar a árvore de Natal. Não entende por que a criança ri e repete sem parar algumas palavras quase ininteligíveis de seu vocabulário infantil: “bicho-papão, mami, bicho-papão!” Sob a árvore de Natal, os presentes jazem, esquecidos. Uma pequena barata morta. Uma semente de maçã seca. Uma asa translúcida e furta-cor de uma mosca.

Outras crianças sonham com o Natal. Passos miúdos percorrem os pisos. Ele está sempre a olhar, a vigiar o seu sono. Ouça com atenção. Se ouvir o estalar de dedos à meia-noite, torça para que seja só um pesadelo... A longa noite de Natal do Velho nunca vai acabar.

Fim

A uma semana do Natal, deixo aqui este presente para vocês. Tenham um Natal Fantástico, crianças... Um grande beigiu!

dezembro 17, 2002

FINAL DE FINAL DE SEMANA

Viva, consegui escrever um conto neste fim de semana! A idéia apareceu na sexta-feira, quase meia-noite. Resultado: acabei ficando até as três da manhã escrevendo o primeiro “rough” do conto. É um conto de Natal, que, como já escrevi em posts anteriores, é um compromisso meu de todos os anos. Na verdade, eu estava tentando escrever o início de um conto de Natal em parceria com um outro escritor. Mas, como tem acontecido nos últimos tempos, o final surge de uma forma tão natural à medida que escrevo, que a tentação de terminar o conto é forte demais. Acabo escrevendo tudo sozinha e o meu projeto de parceria acaba voltando à estaca zero. Foi o que aconteceu. O conto nasceu, está quase pronto. Mas o início do outro conto, o de parceria, teve que ser escrito na manhã de domingo. Mas consegui. Que alívio!

Ah, sim, também fui no sábado, com Tita e Cíntia, ao evento de lançamento do livro "Talento Feminino em Prosa e Verso", no Espaço Cultural Alberico Rodrigues na praça Bendito Calixto. Estavam lá também Vampirella e seu amigo Sérgio, o tatuador que já foi repórter do “Caras”. Ficamos sabendo que ele tirou uma foto com Vera Loyola e trocamos os devidos veneninhos a respeito, pois Sérgio nada fica a dever aos vampiros no quesito destilação de venenos e afins. Adriano Siqueira e Lila também estiveram por lá para promover o fanzine Adorável Noite. E a diversão correu por conta das avis rara que transitavam entre as mesas do misto de espaço cultural e livraria. Enfim, uma tarde divertida de sábado, valeu, meninas e meninos!

Vi dois filmes em vídeo. Um deles é “Blade II”, um thriller movimentado e frenético, segunda incursão de Wesley Snipes como o meio-vampiro do bem que pode andar à luz do dia. Vi o primeiro filme e não tinha gostado muito. O segundo segue o padrão do primeiro. Wesley Snipes continua impressionante com o seu visual couro negro-moderno-machão, acrescido de tatuagens no couro cabeludo e corte de cabelo que mais parece refilado a laser. As lutas coreografadas e cheias de efeitos são bonitas de se ver, mas cansativas pelo excesso de cenas. Música black o tempo todo. Na verdade, por trás de cenas movimentadas, prolonga-se uma história simples e ingênua, sem muitas novidades.

O outro filme que assisti é “O Pacto dos Lobos” (Le Pacte des Loups), um longa francês impecável. Uma história fantástica sobre um monstro, La Bête (a Besta), que aterroriza uma aldeia francesa de Gévaudan, episódio baseado em fatos reais que ocorreram de 1764 a 1767. Um naturalista e estudioso de plantas e animais, Grégoire de Fronsac, e o seu amigo, o índio americano Mani, são enviados pelo rei para investigar o monstro, que alguns dizem ser um lobo gigante, um dragão ou mesmo o próprio demônio.Um filme admirável com uma plástica perfeita de luz, som e figurinos. Os atores Samuel Le Bihan, como Fronsac, e Mark Dacascos (o Eric Draven do seriado “O Corvo” da tv), como o indígena Mani, são simpáticos, bonitos, adequados aos personagens. As cenas de violência têm uma beleza perturbadora, como é perturbadora a presença do ótimo ator Vincent Cassel como Jean-François, irmão de Marianne, por quem Fronsac se apaixona. E, claro, a beleza clássica de Monica Bellucci. A paisagem francesa na passagem de outono-inverno-primavera, quando ocorre a ação do filme, é tão belo que parece um sonho. E a história, cheia de ação e suspense, contrapõe a crendice da plebe e a obscuridade de intenções dos velhos nobres da região ao ponto de vista científico de Fronsac. Um filme para ser visto devagar, saboreando os matizes do cenário, as cenas de ação sutis, a beleza dos atores.

Bem, era isso. Tenham uma ótima semana!


O Pacto dos Lobos


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